Guia Definitivo do Flamengo: História, Títulos e a Governança

O Clube de Regatas do Flamengo, com sua imensa e apaixonada torcida, a Nação Rubro-Negra, é um dos maiores fenômenos socioculturais e esportivos do Brasil. Fundado sob a tradição náutica, o clube transcendeu suas origens para se tornar uma potência no futebol, com uma história marcada por glórias épicas, ídolos inesquecíveis e uma gestão moderna que o levou a um patamar de excelência esportiva e financeira. A longevidade e a capacidade de se reinventar em diferentes épocas são a marca indelével do clube, que se mantém no topo do cenário nacional e internacional.

Raízes e Mística: Do Remo à Gênese do Futebol e a Forja da Nação

A história do clube começa em 15 de novembro de 1895, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Inicialmente, o clube se dedicava exclusivamente ao remo, esporte de elite da época, e foi fundado por um grupo de jovens que buscava aprimorar a prática da modalidade ^[1]. A mística do clube já se manifestava na busca pela excelência e na superação, características que seriam transferidas para o futebol.

A Gênese do Futebol: A Dissidência do Fluminense e o Nascimento do Rubro-Negro

A seção de futebol, que viria a ser a mais famosa do clube, nasceu de um evento crucial na história do futebol carioca: a dissidência de jogadores do Fluminense Football Club em 1911. Após um desentendimento, principalmente motivado pela insatisfação com a disciplina e a gestão interna do Fluminense, um grupo de jogadores liderado por Alberto Borgerth e Píndaro de Carvalho decidiu se desligar do tricolor.

Este grupo procurou o Clube de Regatas do Flamengo, que lhes ofereceu apoio e estrutura para a criação de um departamento de futebol. A primeira partida oficial do time de futebol do Flamengo ocorreu em 1912, e a estreia no Campeonato Carioca se deu em 1913. A partir desse momento, o Flamengo rapidamente se consolidou no cenário do futebol carioca, conquistando seu primeiro Campeonato Carioca em 1914, apenas dois anos após a fundação do departamento

^[2]. Este evento é fundamental para entender a rivalidade histórica e o nascimento de uma das maiores forças do futebol brasileiro.

A Forja da Nação: O Apelo Popular e o Título de “Mais Querido”

A mística do “Mais Querido do Brasil” é forjada na sua capacidade de mobilização popular e na sua profunda conexão com as camadas mais amplas da sociedade, contrastando com a origem mais elitista de seus rivais. A alcunha foi reforçada por conquistas que demonstraram a força e a longevidade do clube no cenário nacional.

Um marco na popularização do clube foi a conquista da Taça Salutaris em 1927, um concurso promovido por uma empresa de água mineral para eleger o clube mais popular do Rio de Janeiro. O Flamengo venceu a disputa, e o título de “O Mais Querido” se tornou parte indissociável de sua identidade. A partir da década de 1930, com a popularização do rádio, a voz da torcida rubro-negra ecoou por todo o país, solidificando sua posição como o clube de maior apelo popular do Brasil.

O Tri do Tri e a Consolidação da Hegemonia Carioca

O Flamengo consolidou sua hegemonia no futebol carioca com a conquista de dois tricampeonatos estaduais consecutivos em diferentes décadas, um feito que cimentou a sua reputação de clube vencedor e de massa.

• O Primeiro Tri (1942, 1943 e 1944): Conquistado em meio à Segunda Guerra Mundial, este período é marcado pela liderança do técnico Flávio Costa e de craques como Zizinho, o grande ídolo da época, e Domingos da Guia. A campanha de 1944, em particular, foi épica, com o Flamengo superando o Vasco da Gama em uma final dramática, consolidando o clube como um time de alcance nacional, com a torcida crescendo para além das fronteiras do Rio de Janeiro. A mística do “time de raça” se forjou neste período.

• O Segundo Tri (1953, 1954 e 1955): Sob o comando do paraguaio Fleitas Solich, este tricampeonato contou com a genialidade de Dida, que se tornaria o ídolo de Zico, e a força de Evaristo de Macedo. A capacidade de vencer em diferentes gerações e contextos é um testemunho da força institucional do clube, reforçando a ideia de que o Flamengo era o time do povo, independente da classe social.

As Eras de Ouro: Do Domínio Mundial à Revolução Financeira e Tática

O Flamengo é conhecido por seus ciclos vitoriosos, que se destacam na história do futebol brasileiro.

A Geração de Ouro (Fim dos anos 70 e Início dos anos 80): O Domínio Global

Esta é, inquestionavelmente, a era mais lendária do Flamengo. Liderada pelo maior ídolo do clube, Arthur Antunes Coimbra, o Zico, a equipe alcançou o topo do futebol continental e mundial. O time, que contava com craques como Júnior, Leandro, Adílio e Nunes, dominou o cenário nacional e internacional com um futebol ofensivo e envolvente.

• A Tática Vencedora: Sob a batuta de técnicos como Cláudio Coutinho e, posteriormente, Paulo César Carpegiani, a equipe utilizava um sistema tático avançado para a época, que explorava a polivalência de Júnior e a genialidade de Zico no meio-campo, com uma defesa sólida e um ataque letal. A versatilidade de jogadores como Júnior, que atuava como lateral e meia, permitia variações táticas que confundiam os adversários.

• O Triunfo Mundial: O auge foi atingido em 1981, com a conquista da Copa Libertadores da América, de forma avassaladora, e, em seguida, do Mundial Interclubes no Japão, com uma vitória incontestável de 3 a 0 sobre o Liverpool (ING). A Geração de Ouro também foi responsável pela conquista de três títulos do Campeonato Brasileiro (1980, 1982 e 1983), consolidando o Flamengo como o time a ser batido no Brasil e no mundo.

A Controvérsia da Copa União de 1987

Um dos momentos mais complexos da história do Flamengo é a conquista da Copa União de 1987. Organizado pelo Clube dos 13, o torneio reuniu os principais clubes do país. O Flamengo venceu a competição, sendo reconhecido pela CBF como um dos campeões brasileiros daquele ano, embora a discussão sobre a unificação do título com o Módulo Amarelo (vencido pelo Sport) persista. O título de 1987 é crucial para a contagem oficial de 8 títulos brasileiros do clube, e representa um marco de organização e força política dos clubes na época.

A Geração de 92 e o Título do Hexa

Após a Geração de Ouro, o Flamengo viveu momentos de instabilidade, mas voltou a brilhar em 1992, com a conquista do Campeonato Brasileiro. Sob a liderança do experiente lateral-esquerdo Júnior, apelidado de “Vovô Garoto”, que retornou ao clube, e com a ascensão de jovens talentos como Júlio César e Djalminha, a equipe superou o Botafogo na final, garantindo o quinto título nacional (considerando o de 1987). Este título foi um marco de resiliência, provando a capacidade do clube de se reerguer mesmo em momentos de menor investimento.

A Era Moderna (2019-Atual): A Revolução Financeira e o Domínio Esportivo

A partir da década de 2010, o Flamengo iniciou um processo de reestruturação financeira e profissionalização da gestão que culminou em um novo ciclo de domínio esportivo sem precedentes na história recente do clube. A gestão focada em saúde financeira, iniciada em 2013, permitiu ao clube investir em elencos de alto nível.

A chegada do técnico português Jorge Jesus em 2019 marcou o início de uma era de futebol ofensivo e dominante. A equipe, liderada por Gabigol e Bruno Henrique, conquistou a Copa Libertadores da América e o Campeonato Brasileiro no mesmo final de semana, um feito histórico. A final da Libertadores de 2019, com a virada épica sobre o River Plate (ARG), cimentou o status de nova Geração de Ouro. O ciclo de vitórias continuou com a conquista da terceira Copa Libertadores da América em 2022, de forma invicta, além de dois títulos consecutivos do Campeonato Brasileiro (2019 e 2020), a Recopa Sul-Americana (2020) e a Copa do Brasil (2022 e 2024).

Títulos Históricos: Do Mundial de 81 ao Tricampeonato da América

O Flamengo é um dos clubes mais vitoriosos do Brasil, com um vasto palmarés de títulos internacionais, nacionais e estaduais.

Nota: O título de 1987 (Copa União) é reconhecido pela CBF como título brasileiro, sendo o Flamengo o campeão.

Ídolos e Lendas: Do Galinho à Geração de Ouro e a Força da Base

A galeria de ídolos do Flamengo é a mais rica e extensa do futebol brasileiro, refletindo sua longevidade e sucesso.

Zico, o Galinho de Quintino

Arthur Antunes Coimbra, o “Galinho de Quintino”, é o maior ídolo da história do Flamengo e um dos maiores jogadores de todos os tempos. Com 509 gols em 732 jogos, Zico foi o maestro da Geração de Ouro, liderando o time nas conquistas do Mundial e da Libertadores de 1981. Sua técnica apurada, visão de jogo e precisão em cobranças de falta o tornaram uma lenda inquestionável.

A Espinha Dorsal de 81 e o Legado

A Geração de Ouro foi composta por uma constelação de craques, muitos deles formados nas categorias de base do clube, que se tornaram ídolos eternos:

• Júnior (Capacete/Vovô Garoto): Lateral-esquerdo e meia, um dos jogadores mais polivalentes e elegantes da história, campeão em 81 e 92.
• Leandro: Lateral-direito de técnica refinada e visão de jogo, fundamental na defesa e no apoio ao ataque da Geração de Ouro.
• Adílio: Meio-campista talentoso e decisivo, autor de um dos gols na final do Mundial de 81.
• Nunes (Artilheiro das Decisões): Atacante que marcou os gols decisivos na final da Libertadores e os dois gols contra o Liverpool no Mundial.
• Zizinho: Ídolo da década de 40, um dos maiores jogadores brasileiros antes de Pelé, formador da mística rubro-negra.
• Dida: Um dos maiores artilheiros da história do clube, ídolo da década de 50.

Ídolos da Era Moderna e a Força do Ninho

A fase de domínio recente também consagrou novos ídolos, muitos deles formados no Ninho do Urubu, o moderno Centro de Treinamento do clube, que se tornou um pilar de sustentabilidade e excelência na formação de atletas:

• Gabigol (Gabriel Barbosa): Atacante decisivo, herói das finais da Libertadores de 2019 (dois gols contra o River Plate) e 2022.
• Bruno Henrique: Atacante veloz e fundamental, eleito o Rei da América em 2019.
• Gerson (Coringa): Meio-campista de técnica e liderança, peça chave nas conquistas recentes.
• Arrascaeta: Meia uruguaio, considerado um dos maiores estrangeiros da história do clube, com atuações decisivas em todos os títulos.
• Everton Ribeiro: Meia e capitão, líder e símbolo da transição para a gestão vitoriosa.

Governança e Transparência: A Reestruturação Financeira e o Desafio do Estádio

O Clube de Regatas do Flamengo é uma associação civil, sem fins lucrativos, e sua gestão é regida pelo Estatuto Social

^[5]. O clube se destaca no cenário nacional por ter implementado uma rigorosa reestruturação financeira a partir de 2013, que serviu de modelo para o futebol brasileiro.

A Revolução da Gestão Profissional: Receitas e Dívidas

O sucesso recente do Flamengo é amplamente atribuído à sua gestão profissionalizada. A Diretoria Executiva, eleita por voto direto, implementou um modelo focado em:

• Redução Drástica da Dívida: A gestão iniciada em 2013 priorizou o pagamento de dívidas e a renegociação de passivos, o que liberou recursos para o investimento no elenco. Embora o balanço de 2024 tenha apontado um aumento na dívida líquida, chegando a R$ 327 milhões, esse aumento é majoritariamente explicado por investimentos na compra de direitos econômicos de jogadores e na infraestrutura, e não por dívidas operacionais

  ^[6].

• Aumento Exponencial de Receitas: O Flamengo se consolidou como o clube de maior faturamento do futebol brasileiro. Pelo quarto ano consecutivo, o clube ultrapassou a marca de R$ 1 bilhão em arrecadação. Em 2024, a receita bruta total foi de aproximadamente R$ 1,33 bilhão, proveniente da diversificação das fontes de renda (patrocínios, sócio-torcedor, direitos de transmissão e vendas de atletas)

  ^[7].

• Investimento em Infraestrutura: O aprimoramento do Centro de Treinamento Ninho do Urubu e o investimento maciço nas categorias de base (“Garotos do Ninho”) garantiram a formação de talentos e a sustentabilidade financeira do clube.

A tabela a seguir ilustra a evolução das receitas do clube nos últimos anos, demonstrando o sucesso da gestão profissional:

Estrutura de Poder e Governança: O Papel do Conselho de Administração

A estrutura de governança do Flamengo é composta por um sistema de pesos e contrapesos, projetado para garantir a fiscalização e a gestão profissional, mesmo sob o modelo associativo:

1. Assembleia Geral: Instância máxima, composta pelos sócios. É o órgão soberano do clube, responsável por eleger os membros do Conselho Deliberativo e ratificar as alterações estatutárias.
2. Conselho Deliberativo: Órgão de fiscalização e deliberação, responsável por aprovar orçamentos, contas e a admissão de novos sócios. É um corpo numeroso que representa a pluralidade política do clube.
3. Conselho de Administração (CA): Este órgão é o pilar da gestão profissional moderna do Flamengo. É composto por membros eleitos, com foco em experiência executiva e empresarial. Seu papel é fiscalizar e orientar a Diretoria Executiva, garantindo a execução do planejamento estratégico de longo prazo e a aderência às melhores práticas de governança corporativa. O CA atua como uma ponte entre a política associativa e a gestão executiva.
4. Conselho de Grandes-Beneméritos: Composto por membros que prestaram serviços notáveis ao clube, atuando como um corpo consultivo e de memória institucional.
5. Diretoria Executiva: Liderada pelo Presidente, eleito por voto direto dos sócios. É o corpo responsável pela gestão diária e pela execução das políticas aprovadas pelo CA e pelo Conselho Deliberativo.

O Debate sobre a SAF: Uma Abordagem Cautelosa

Apesar do sucesso do modelo associativo, a discussão sobre a criação de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) no Flamengo é um tema recorrente. O ex-presidente Rodolfo Landim já se manifestou favorável à implementação de uma SAF, mas em moldes que garantam que o clube associativo mantenha o controle majoritário (o chamado “SAF-Mãe”), evitando que o clube “fique na mão de um dono”

^[8]. A complexidade da estrutura do clube e o sucesso financeiro do modelo atual tornam a decisão de migrar para a SAF um debate cauteloso, focado em encontrar um modelo que preserve a identidade e o controle da Nação Rubro-Negra. O clube busca um modelo que combine a eficiência da gestão empresarial com a paixão e o controle do sócio.

O Desafio do Estádio Próprio: A Busca pela Independência

Apesar do sucesso financeiro e esportivo, o Flamengo ainda não possui um estádio próprio de grande porte. O clube utiliza majoritariamente o Estádio do Maracanã, em regime de concessão ou aluguel, e a construção de uma arena própria é um tema constante de debate e planejamento estratégico para o futuro.

O projeto de construção de um estádio próprio, frequentemente discutido na região do Gasômetro, no Rio de Janeiro, é visto como o próximo grande passo para a consolidação da independência financeira e a ampliação da capacidade de geração de receitas. Com um estádio próprio, o Flamengo poderia controlar 100% de seus jogos e eventos, eliminando a dependência de concessões e maximizando o retorno financeiro. A viabilidade do projeto depende de negociações com o poder público e de um modelo de financiamento robusto, mas é considerado crucial para manter a competitividade a longo prazo e solidificar o clube no “outro patamar” financeiro.

Referências

^[1] Flamengo. A fundação. [URL: https://www.flamengo.com.br/titulosdoflamengo]

^[2] Flamengo. O início do futebol. [URL: https://www.flamengo.com.br/titulosdoflamengo]

^[3] Lance!. Ídolos do Flamengo: os 10 maiores da história. [URL: https://www.lance.com.br/flamengo/idolos-flamengo.html]

^[4] Wikipedia. Títulos do Clube de Regatas do Flamengo no futebol. [URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/T%C3%ADtulos_do_Clube_de_Regatas_do_Flamengo_no_futebol]

^[5] Flamengo. Estatuto do Clube. [URL: https://www.flamengo.com.br/estatuto-do-clube]

^[6] GE. Balanço: Flamengo tem receita recorde, mas dívida aumenta e chega a R$ 327 milhões em 2024. [URL: https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2025/04/01/balanco-do-flamengo-apesar-de-receita-recorde-clube-fecha-2024-com-deficit-de-r-734-milhoes.ghtml]

^[7] CNN Brasil. Flamengo bate R$ 1 bilhão em receitas pelo terceiro ano seguido. [URL: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/flamengo/flamengo-bate-r-1-bilhao-em-receitas-pelo-terceiro-ano-seguido/]

^[8] GE. Landim detalha ideia de SAF para o Flamengo e garante: ‘Se quiserem, eu assino que jamais serei CEO’. [URL: https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/05/02/landim-detalha-ideia-de-saf-para-o-flamengo-e-garante-se-quiserem-eu-assino-que-jamais-serei-ceo.ghtml]

^[9] Placar. A história da Copa União de 1987. [URL: https://placar.abril.com.br/placar/a-polemica-do-titulo-de-1987-do-campeonato-brasileiro/]

^[10] UOL Esporte. Zico: 509 gols, 732 jogos e o legado eterno no Flamengo. [URL: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/03/03/zico-509-gols-732-jogos-e-o-legado-eterno-no-flamengo.htm]

^[11] Lance!. A origem do ‘Mais Querido do Brasil’. [URL: https://www.lance.com.br/flamengo/a-origem-do-mais-querido-do-brasil.html]

^[12] GE. Flamengo avança em negociações por terreno no Gasômetro para estádio próprio. [URL: https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/10/25/flamengo-avanca-em-negociacoes-por-terreno-no-gasometro-para-estadio-proprio.ghtml]

Marcos Satoru Yunaka

Engenheiro, Técnico, com foco em Engenharia de Telecomunicações e sistemas de comunicação via satélite. Casado, Pai de 2 filhos. Cidadão de bem e brasileiro.
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